Resumo
Objetivo
Avaliar a influência da amplitude de movimento do cotovelo e do antebraço na excursão distal da cabeça longa do bíceps (CLB).
Métodos
Verificou‐se a excursão distal da cabeça longa do bíceps (CLB) após tenotomia em ombros de oito cadáveres, por meio da aferição da distância entre um ponto demarcado na cabeça longa do bíceps (CLB) a 3 cm da borda anterolateral do acrômio em flexão máxima e sua posição em diferentes graus de flexão do cotovelo, com o uso de um paquímetro digital. Foram anotadas as medidas nos graus de flexão do cotovelo 135°, 90°, 45° e 0°, estabelecidas com o uso de um goniômetro. As medidas foram tomadas com o antebraço em posição neutra, supinação e pronação.
Resultados
Observou‐se diferença entre as médias das medidas da excursão distal da cabeça longa do bíceps (CLB) (amostra total) entre os graus de flexão do cotovelo (p < 0,01). Todavia, não foi encontrada diferença estatística entre diferentes posições do antebraço, entre os lados, gêneros e idades dos cadáveres estudados.
Conclusão
A extensão progressiva do cotovelo ocasionou a excursão distal progressiva da cabeça longa do bíceps (CLB), mas sem interferência da posição do antebraço, gênero, lado e idade dos cadáveres estudados.
Abstract
Objective
To evaluate the influence of elbow and forearm range of motion on the distal excursion of the long head of the biceps (LHB).
Methods
The distal excursion of the LHB after tenotomy of the shoulders of eight cadavers was ascertained by measuring the distance between a point marked out on the LHB, 3 cm from the anterolateral border of the acromion, and its position at different degrees of elbow flexion, using a digital pachymeter. The measurements at elbow flexion of 135°, 90°, 45° and 0° were noted: these angles were established using a goniometer. The measurements were made with the forearm in neutral, supination and pronation positions.
Results
Differences between the mean measurements of the distal excursion of the LHB (total sample) were observed between the degrees of elbow flexion (p < 0.01). However, no statistical differences were observed between the different forearm positions, between the sides, genders and ages of the cadavers studied.
Conclusion
Progressive extension of the elbow caused progressive distal excursion of the LHB, but without interference in the forearm position, gender, side or age of the cadavers studied.
Palavras‐chave
Articulação do ombro; Cavidade glenoide; Tenotomia
Keywords
Shoulder joint; Glenoid cavity; Tenotomy
Introdução
A cabeça longa do tendão do músculo bíceps braquial (CLB) se desenvolve em torno de sete a oito semanas de gestação e diferencia‐se a partir do mesoderma. É descrita como contínua com o lábio da glenoide e o tubérculo supraglenoidal e passa anterior e superiormente à cabeça do úmero antes de entrar no sulco bicipital.1 and 2 É intra‐articular e extrassinovial e desliza passivamente sobre a cabeça do úmero durante a abdução ou rotação. Seu comprimento é de 9 cm e tem de 5 a 6 mm de diâmetro. Sua inervação é dada por uma rede de fibras sensoriais do sistema nervoso simpático.3, 4 and 5
O bíceps estende‐se desde a escápula até o antebraço e exerce função no ombro e cotovelo. Sua função no cotovelo é bem estabelecida e inclui tanto a flexão quanto a supinação. Já no ombro, apesar de terem sido atribuídas várias funções, seu papel exato é controverso.6 Análises eletromiográficas mostraram que a CLB serve com um estabilizador nas articulações instáveis, mas não no ombro estável.7 Estudos biomecânicos demonstraram o tendão como depressor dinâmico da cabeça do úmero, mas isso não foi comprovado clinicamente.8 and 9 Kunh et al.10 demonstraram sua importância como restritor da rotação externa do braço abduzido.
A lesão do lábio superior da glenoide que envolve a CLB é chamada de lesão Slap (superior labrum, anterior and posterior) e foi descrita no início da década de 1990 por Snyder et al. 11 O tratamento conservador ou cirúrgico dessas lesões está bem definido, porém o tratamento de reabilitação pós‐operatória nunca foi consenso. Existem protocolos, descritos na literatura atual, 12 and 13 que evitam a mobilidade precoce do cotovelo em extensão, sob a dúvida do consequente tensionamento da CLB proximal e lábio glenoidal superior reinseridos no ato operatório, o que supostamente poderia ocasionar falha na cicatrização e nova lesão. 12 and 13
O objetivo deste trabalho foi avaliar a influência da amplitude de movimento do cotovelo e do antebraço na excursão distal do CLB.
Métodos
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da nossa instituição (número CAAE 19893114.6.0000.5463). Foram dissecados 16 ombros de oito cadáveres, do Serviço de Verificação de Óbitos da Universidade de São Paulo (Svoc‐USP), os quais não apresentavam fraturas dos membros superiores, deformidades locais ou cicatrizes. Fez‐se via de acesso anterolateral de 10 cm (fig. 1A), seguida de dissecção entre o músculo deltoide anterior e lateral (fig. 1B) até abordagem e dissecção da CLB (fig. 1C).
Full-size image (31 K)
Figura 1.
Procedimento de tenotomia no cadáver. A, demarcação dos parâmetros anatômicos ósseos e da via de acesso; B, acesso pela via anterolateral; C, dissecção da CLTB da sua goteira até sua origem na glenoide; D, aferição da excursão da CLB após tenotomia proximal em flexão do cotovelo de 135°, 90°, 45° e 0°.
Figure options
Demarcou‐se, com uma caneta cirúrgica, uma linha perpendicular à CLB, 3 cm distal à borda anterolateral do acrômio. Fez‐se a tenotomia da CLB junto a sua origem no tubérculo supraglenoidal com o cotovelo em flexão máxima. Verificou‐se sua excursão distal, por meio da aferição da distância entre a linha demarcada no tendão bicipital e agulhas colocadas à margem da linha previamente estabelecida na CLB, com o uso de um paquímetro digital (LeeTools, Houston, EUA) (fig. 1D), conforme se estendia o cotovelo. Foram anotadas as medidas nos seguintes graus de flexão do cotovelo: 135°, 90°, 45° e 0°, estabelecidos com o uso de um goniômetro. As medidas foram tomadas com o antebraço em posição neutra, supinação e pronação.
Análise estatística
Para comparar os resultados das medidas da excursão distal do CLB, foi usado o teste de Friedman. Para determinar entre quais medidas ocorriam diferenças estatísticas significativas, usou‐se o teste de Wilcoxon. Para todos os testes, o nível de rejeição da hipótese de nulidade foi 0,05 (nível de significância de 95%).
Os testes de Friedman e Wilcoxon foram também usados para comparar os resultados das medidas da excursão do CLB separadamente e na amostra como um todo. Para comparar os resultados das medidas de acordo com o gênero e lado estudado foi usado o teste de Mann‐Whitney. Para avaliação da relação entre a idade e os resultados das medidas tomadas, usou‐se a correlação de Spearman.
Resultados
Dos oito cadáveres dissecados, cinco eram do sexo feminino e três do masculino; oito do lado direito e oito do lado esquerdo (tabela 1). Os valores médios da excursão distal da CLB com antebraço em posição neutra e em 135° de flexão do cotovelo foi de 1,41 mm; em 90° de flexão foi de 13,97 mm; em 45° foi de 18,01 mm e 0° de 22,53 mm (tabela 2). Quando foram feitas aferições com alteração da posição do antebraço para pronação e supinação não ocorriam diferenças das medidas.
Tabela 1.
Medidas (em mm) com paquímetro digital da excursão distal a 135°, 90°, 45° e 0° de flexão do cotovelo (angulações obtidas com goniômetro)
Cadáver Idade Sexo Lado Excursão a 135° Excursão a 90° Excursão a 45° Excursão a 0°
1 76 F D 1,51 17,59 19,08 25,62
E 1,45 15,16 21,16 25,76
2 72 F D 1,88 12,15 17,53 21,13
E 0,99 12,84 18,32 21,06
3 64 M D 1,25 13,13 19,06 23,07
E 1,66 14,25 20,15 23,99
4 75 F D 1,58 12,88 16,5 22,54
E 1,57 11,98 15,84 21,4
5 58 M E 1,48 14,85 16,41 21,63
D 1,52 14,23 17,02 20,73
6 72 F D 1,6 17,9 19,76 26,43
E 1,51 16,9 19,6 26,12
7 69 M D 1,27 12,14 17,16 21,19
E 1,5 13,13 18 21,77
8 88 F D 1,15 13 16,49 19,18
E 1,16 11,31 16,02 18,85
Table options
Tabela 2.
Análise estatística das medidas da excursão distal do CLB em relação à amostra total
Amostra Total Geral
135° graus 90° graus 45° graus 0° graus
Média 1,44 13,97 18,01 22,53
Mediana 1,51 13,13 17,77 21,70
Desvio padrão 0,22 2,03 1,64 2,41
Q1 1,27 12,67 16,50 21,11
Q3 1,57 14,93 19,21 24,40
N 16 16 16 16
IC 0,11 1,00 0,80 1,18
P valor <0,001
Table options
Observaram‐se diferenças significativas (p < 0,001) das medidas comparativas da excursão distal do CLB, considerando a amostra total, em todos os graus de flexão do cotovelo (tabela 2). Em contrapartida, não foram verificadas diferenças estatísticas entre os lados direito e esquerdo (tabela 3), entre os gêneros masculino e feminino (tabela 4) e entre as idades (tabela 5) dos cadáveres estudados.
Tabela 3.
Análise estatística das medidas da excursão distal do CLB em relação aos lados
Lado Média Mediana Desvio padrão Q1 Q3 N IC p valor
Excursão a 135° Direito 1,47 1,52 0,24 1,27 1,59 8 0,16 0,495
Esquerdo 1,42 1,49 0,22 1,38 1,53 8 0,16
Excursão a 90° Direito 14,13 13,07 2,33 12,70 15,07 8 1,61 0,875
Esquerdo 13,80 13,69 1,84 12,63 14,93 8 1,27
Excursão a 45° Direito 17,83 17,35 1,29 16,89 19,07 8 0,89 0,916
Esquerdo 18,19 18,16 2,00 16,31 19,74 8 1,39
Excursão a 0° Direito 22,49 21,87 2,49 21,03 23,71 8 1,72 0,834
Esquerdo 22,57 21,70 2,50 21,32 24,43 8 1,73
Table options
Tabela 4.
Análise estatística das medidas da excursão distal do CLB em relação ao sexo
Sexo Média Mediana Desvio padrão Q1 Q3 N IC p valor
Excursão a 135° Feminino 1,44 1,51 0,26 1,23 1,58 10 0,16 0,914
Masculino 1,45 1,49 0,16 1,32 1,52 6 0,13
Excursão a 90° Feminino 14,17 12,94 2,49 12,32 16,47 10 1,54 0,828
Masculino 13,62 13,68 1,00 13,13 14,25 6 0,80
Excursão a 45° Feminino 18,03 17,93 1,83 16,49 19,47 10 1,14 1,000
Masculino 17,97 17,58 1,41 17,06 18,80 6 1,13
Excursão a 0° Feminino 22,81 21,97 2,93 21,08 25,73 10 1,82 0,828
Masculino 22,06 21,70 1,23 21,30 22,75 6 0,98
Table options
Tabela 5.
Análise estatística das medidas da excursão distal do CLB em relação à idade
Idade
Corr p valor
Excursão a 135° ‐21,6% 0,422
Excursão a 90° ‐19,7% 0,466
Excursão a 45° ‐12,2% 0,653
Excursão a 0° ‐8,9% 0,742
Table options
Discussão
Este estudo está em concordância com o trabalho feito por Gramtad et al.,14 com evidências de um aumento da excursão distal da CLB à medida que o cotovelo é estendido. Por outro lado, segundo esses autores, além da extensão do cotovelo, a pronação do antebraço estaria associada a um aumento da tensão da CLB e do lábio superior da glenoide. Em nossas observações não foram verificadas diferenças da excursão distal da CLB quanto ao posicionamento do antebraço (pronação ou supinação). Essa diferença de resultados poderia ser justificada pelo fato de esses autores terem feito suas aferições com o ombro em 60° de abdução, ao passo que em nosso estudo as medidas foram tomadas com o ombro aduzido junto ao corpo.
Segundo Wilk et al. 13 no tratamento pós‐operatório de uma lesão SLAP, exercícios ativos e passivos de extensão do cotovelo estariam indicados a partir dos 10 primeiros dias de pós‐operatório, apenas naqueles pacientes submetidos ao desbridamento simples (tipos I e III da classificação de Snyder). Entretanto, nos pacientes submetidos ao reparo da lesão Slap (tipos II e IV da classificação de Snyder) dever‐se‐ia evitar a extensão precoce completa do cotovelo e o consequente tensionamento bicipital proximal. Essa orientação estaria de acordo com os achados do nosso estudo, uma vez que se demonstrou maior excursão distal da CLB, após a tenotomia em sua origem, conforme progressivamente estendia‐se o cotovelo.
Conclusões
Após a tenotomia na origem do CLB, a extensão progressiva do cotovelo ocasionou excursão distal progressiva da CLB, entretanto sem interferência da posição do antebraço, do gênero, do lado e da idade dos cadáveres estudados.
Conflitos de interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Agradecimentos
Os autores agradecem à equipe de ortopedia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e à equipe do Serviço de Verificação de Óbitos pelo apoio na feitura do presente estudo.
Referências
1
E. Gardner, D.J. Gray
Prenatal development of the human shoulder and acromioclavicular joints
Am J Anat., 92 (2) (1953), pp. 219–276
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (43)
2
C. Jobe
Gross anatomy of the shoulder
C. Rockwood (Ed.), The shoulder, Elsevier, Philadelphia (2009)
3
H.H. Hitchcock, C.O. Bechtol
Painful shoulder; observations on the role of the tendon of the long head of the biceps brachii in its causation
J Bone Joint Surg Am., 30 (2) (1948), pp. 263–273
4
K. Alpantaki, D. McLaughlin, D. Karagogeos, A. Hadjipavlou, G. Kontakis
Sympathetic and sensory neural elements in the tendon of the long head of the biceps
J Bone Joint Surg Am., 87 (7) (2005), pp. 1580–1583
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (51)
5
M.J. Bey, G.J. Elders, L.J. Huston, J.E. Kuhn, R.B. Blasier, L.J. Soslowsky
The mechanism of creation of superior labrum, anterior, and posterior lesions in a dynamic biomechanical model of the shoulder: the role of inferior subluxation
J Shoulder Elbow Surg., 7 (4) (1998), pp. 397–401
Article | PDF (2551 K) | View Record in Scopus | Citing articles (50)
6
N. Sethi, R. Wright, K. Yamaguchi
Disorders of the long head of the biceps tendon
J Shoulder Elbow Surg., 8 (6) (1999), pp. 644–654
Article | PDF (7348 K) | View Record in Scopus | Citing articles (114)
7
S.H. Kim, K.I. Ha, H.S. Kim, S.W. Kim
Electromyographic activity of the biceps brachii muscle in shoulders with anterior instability
Arthroscopy., 17 (8) (2001), pp. 864–868
Article | PDF (125 K) | View Record in Scopus | Citing articles (19)
8
V.P. Kumar, K. Satku, P. Balasubramaniam
The role of the long head of biceps brachii in the stabilization of the head of the humerus
Clin Orthop Relat Res, 244 (1989), pp. 172–175
View Record in Scopus | Citing articles (132)
9
J.J. Warner, P.J. McMahon
The role of the long head of the biceps brachii in superior stability of the glenohumeral joint
J Bone Joint Surg Am., 77 (3) (1995), pp. 366–372
View Record in Scopus | Citing articles (142)
10
J.E. Kuhn, L.J. Huston, L.J. Soslowsky, Y. Shyr, R.B. Blasier
External rotation of the glenohumeral joint: ligament restraints and muscle effects in the neutral and abducted positions
J Shoulder Elbow Surg, 14 (1 Suppl S) (2005), pp. 39S–48S
11
S.J. Snyder, R.P. Karzel, W. Del Pizzo, R.D. Ferkel, M.J. Friedman
SLAP lesions of the shoulder
Arthroscopy., 6 (4) (1990), pp. 274–279
Article | PDF (4463 K) | View Record in Scopus | Citing articles (698)
12
J.R. Andrews, W.G. Carson, W.D. McLeod
Glenoid labrum tears related to the long head of the biceps
Am J Sports Med., 13 (5) (1985), pp. 337–341
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (411)
13
K.E. Wilk, M.M. Reinold, J.R. Dugas, C.A. Arrigo, M.W. Moser, J.R. Andrews
Current concepts in the recognition and treatment of superior labral (SLAP) lesions
J Orthop Sports Phys Ther., 35 (5) (2005), pp. 273–291
View Record in Scopus | Full Text via CrossRef | Citing articles (34)
14
G.G. Gramstad, B.W. Sears, G. Marra
Variation of tension in the long head of the biceps tendon as a function of limb position with simulated biceps contraction
Int J Shoulder Surg., 4 (1) (2010), pp. 8–14
View Record in Scopus | Citing articles (2)
☆
Trabalho feito no Grupo de Ombro e Cotovelo, Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Hospital do Servidor Público Estadual, São Paulo, SP, Brasil.
Autor para correspondência.